domingo, 1 de junho de 2014




Todas as vidas gastei
para morrer contigo.

E agora
esfumou-se o tempo
e perdi o teu passo
para além da curva do rio.

Rasguei as cartas.
Em vão: o papel restou intacto.
Só os meus dedos murcharam, decepados.

Queimei as fotos.
Em vão: as imagens restaram incólumes
e só os meus olhos se desfizeram, redondas cinzas.

Com que roupa
vestirei minha alma
agora que já não há domingos?

Quero morrer, não consigo.
Depois de te viver
não há poente
nem o enfim de um fim.

Todas as mortes gastei
para viver contigo.



Mia Couto in Idades Cidades Divindades

sexta-feira, 30 de maio de 2014





Vem,
Adormece encostada a este braço
Mais débil do que o teu.
Entrega-te despida
Nas mãos dum homem solitário
Que a maldição não deixa
Que possa nem sequer lutar por ti.
Vem,
Sem que eu te chame, ou te prometa a vida.
E sente que ninguém,
No descampado deste mundo, tem
A alma mais guardada e protegida.

Miguel Torga

quinta-feira, 10 de abril de 2014






"Ofereci-te tanta coisa. A mais preciosa, aquela que há muitos anos não dava a ninguém - a mais preciosa, repito, foi a minha absoluta disponibilidade para estar contigo, ouvir-te, ou estar em silêncio perto de ti."

Al Berto

segunda-feira, 7 de abril de 2014





É por uma verdade íntima que eu te amo, Estranho.
Porque não há como desobedecer ao amor.
Portanto, eu te amo na penumbra,
Soterrando o sentimento com explicações diversas.
E, a cada dia em que me calo, disfarço e me desfaço
Do que há pulsando vivo aqui.
Mas confranjo o meu coração
Porque estreito o peito.

É de uma verdade crua esse meu amor, Estranho.
E escondo tua existência atrás dos pensamentos
Que para te ter perto
Me atiram longe.

Congelo em silêncio tua imagem,
Mas minimizo rápido o teu sorriso-tela
Como quem mancha os dedos
Na tinta fresca do desejo
E, por medo de uma possível rejeição,
Desfigura toda a aquarela.




o    Marla de Queiroz


quinta-feira, 27 de março de 2014







Dei-te os dias, as horas e os minutos
Destes anos de vida que passaram;
Nos meus versos ficaram
Imagens que são máscaras anônimas
Do teu rosto proibido;
A fome insatisfeita que senti
Era de ti,
Fome do instinto que não foi ouvido.

Agora retrocedo, leio os versos,
Conto as desilusões no rol do coração,
Recordo o pesadelo dos desejos,
Olho o deserto humano desolado,
E pergunto porquê, por que razão
Nas dunas do teu peito o vento passa
Sem tropeçar na graça
Do mais leve sinal da minha mão... 

Miguel Torga

sábado, 22 de fevereiro de 2014



 



No avesso das palavras
na contrária face
da minha solidão
eu te amei
e acariciei
o teu imperceptível crescer 
como carne da lua
nos nocturnos lábios entreabertos

E amei-te sem saberes
amei-te sem o saber
amando de te procurar
amando de te inventar

No contorno do fogo
desenhei o teu rosto
e para te reconhecer
mudei de corpo
troquei de noites
juntei crepúsculo e alvorada

Para me acostumar
à tua intermitente ausência
ensinei às timbilas
a espera do silêncio


Mia Couto in Raiz de orvalho e outros poemas

sábado, 18 de janeiro de 2014




Tem  um poema da Alice Ruiz que fala:
"eu vivo disso
poesia, sonhos
e outras canções
sem emoção
morro de fome." 

A maneira como os poetas veem o mundo, como falam dos amores, das tristezas, da solidão e das dores é fascinante.
Em um conto, Caio Fernando Abreu diz: “que bom que sou criativo e   descubro a gota de mel no meio do fel.”
A visão poética tem esta capacidade: desembrutecer.
Gostar de poesia é viver de forma a enxergar beleza na feiura dos dias e é combustível para a sanidade.
Os poetas escrevem para nos emocionar, divertir ou doer. Viver a poesia é pensar as coisas do mundo de um jeito leve, chafurdar  ou questioná-las.
Utilizar a visão poética para mudar conceitos ou pré conceitos é enxergar com os olhos do coração e dar as situações mais amargas  um toque de doçura.

Quem tema o olhar poético não julga pelo ato/fato em si. Este olhar vê por trás, vê além.
Embora, para muitos, a visão poética só é possível em sonho, trago o exemplo   de Nelson Mandela que  durante os   27 anos de prisão fez da poesia  o alimento para sua luta. Foi na  poesia Invictus do britânico William Ernest  que ele encontrou a esperança e a força necessárias para manter-se vivo. Mandela contou  que toda vez que começava a esmorecer, lia e relia o texto, em busca de um companheiro para a dor. Inegável foi o efeito, visto que ele manteve o equilíbrio e a doçura do sorriso apesar de...
No conto, Os dragões não conhecem o paraíso, Caio Fernando Abreu diz: “
Então, que seja doce. Repito todas as manhãs, ao abrir as janelas para deixar entrar o sol ou cinza dos dias, bem assim: que seja doce. Quando há sol, e esse sol bate na minha cara amassada do sono ou da insônia, repito sete vezes para dar sorte: que seja doce que seja doce que seja doce e assim por diante. Mas, se alguém me perguntasse o que deverá ser doce, talvez não saiba responder. Tudo é tão vago como se fosse nada"
Por isso, por tanto mais e por nada,  meu olhar é de poesia...

Ana Dal

* Texto para o curso de "Oratória e dicção"
- Falando do meu olhar...:)