quinta-feira, 26 de dezembro de 2013




Há doenças piores que as doenças,
Há dores que não doem, nem na alma
Mas que são dolorosas mais que as outras.
Há angústias sonhadas mais reais
Que as que a vida nos traz, há sensações
Sentidas só com imaginá-las
Que são mais nossas do que a própria vida.
Há tanta coisa que, sem existir,
Existe, existe demoradamente,
E demoradamente é nossa e nós...
Por sobre o verde turvo do amplo rio
Os circunflexos brancos das gaivotas...
Por sobre a alma o adejar inútil
Do que não foi, nem pôde ser, e é tudo.

Dá-me mais vinho, porque a vida é nada.



Fernando Pessoa

segunda-feira, 23 de setembro de 2013




Por ti junto aos jardins cheios de flores novas
me doem os perfumes da primavera.
Esqueci o teu rosto, não me lembro de tuas mãos,
como beijavam os teus lábios?
Por ti amo as brancas estátuas adormecidas nos parques,
as brancas estátuas que não têm voz nem olhar.
Esqueci tua voz, tua voz alegre,
me esqueci dos teus olhos.
Como uma flor a seu perfume,
estou atado à tua lembrança imprecisa.
Estou perto da dor como uma ferida,
se me tocas me farás um dano irremediável.
Não me lembro mais do teu amor e no entanto
te adivinho atrás de todas as janelas.
Por ti me doem os pesados perfumes do estio:
por ti volto a espreitar
os signos que precipitam os desejos,
as estrelas em fuga, os objetos que caem.
 

Pablo Neruda

segunda-feira, 8 de julho de 2013



minha primeira queda
não abriu o paraquedas


daí passei feito uma pedra
pra minha segunda queda


da segunda à terceira queda
foi um pulo que é uma seda


nisso uma quinta queda
pega a quarta e arremeda


na sexta continuei caindo
agora com licença
mais um abismo vem vindo



Paulo Leminski in Toda poesia

domingo, 30 de junho de 2013





"Os homens são tão necessariamente loucos que não ser louco seria uma outra forma de loucura. Necessariamente porque o dualismo existencial torna sua situação impossível, um dilema torturante. Louco porque tudo o que o homem faz em seu mundo simbólico é procurar negar e superar sua sorte grotesca. Literalmente entrega-se a um esquecimento cego através de jogos sociais, truques psicológicos, preocupações pessoais tão distantes da realidade de sua condição que são formas de loucura — loucura assumida, loucura compartilhada, loucura disfarçada e dignificada, mas de qualquer maneira loucura."

 
Ernest Becker in A negação da morte

sábado, 29 de junho de 2013




"... Eu não me recordo quantas vezes eu "quase" morri de amor e de solidão.
Até hoje eu não sei se quando eu estou amando é quando a solidão me devasta ou se é o contrário. Atualmente tem me faltado tudo. Até a minha luz foi cortada. Só não me falta a loucura de acreditar que este fósforo molhado que eu seguro em minhas mãos vai te ajudar a me enxergar na escuridão. "

Marinez Full
 

sexta-feira, 28 de junho de 2013




Oh!  O  silêncio das salas de espera
Onde esses pobres guarda-chuvas lentamente escorrem...

O silêncio das salas de espera
E aquela última estrela...
Aquela última estrela
Que bale, bale, bale,
Perdida na enchente da luz...
Aquela última estrela
E, na parede, esses quadrados lívidos,
De onde fugiram os retratos...

De onde fugiram todos os retratos.
E esta minha ternura,
Meu Deus,
Oh! toda esta minha ternura inútil, desaproveitada...!
 

Mario Quintana - in Canções
 

segunda-feira, 24 de junho de 2013





 
 
Tatuagem Invisível

Os dias mais lindos têm a tua cara.
Os sonhos mais tristes são porque não estás.
A melhor inspiração é por te saber existir
A noite mais fria é quando tens que partir.
Sou para ti a certeza do amor verdadeiro,
aquele que podes contar a qualquer momento.
Tu és para mim muito mais que um parceiro.
Tens domicílio fixo em meus pensamentos
Trago na pele uma tatuagem invisível
impressa com tua marca gravada em mim.
Teu cheiro, teu gosto, teu calor
enche-me de desejo como fogo a me consumir.
Exibes no rosto um sorriso estampado, pelo orgulho de me possuir.
Carregas como a um troféu o sentimento inexorável
de ser o único homem com tua marca gravada
na memória da minha pele, e que por toda uma vida
jamais irá se extinguir.


Marinez Full in Coquetel Molotov

terça-feira, 11 de junho de 2013




Penso em ti no silêncio da noite, quando tudo é nada
Penso em ti no silêncio da noite, quando tudo é nada,
E os ruídos que há no silêncio são o próprio silêncio,
Então, sozinho de mim, passageiro parado
De uma viagem em Deus, inutilmente penso em ti.

Todo o passado, em que foste um momento eterno,
É como este silêncio de tudo.
Todo o perdido, em que foste o que mais perdi,
É como estes ruídos,
Todo o inútil, em que foste o que não houvera de ser
É como o nada por ser neste silêncio nocturno.

Tenho visto morrer, ou ouvido que morrem,
Quantos amei ou conheci,
Tenho visto não saber mais nada deles de tantos que foram
Comigo, e pouco importa se foi um homem ou uma conversa,
Ou um povo omitido pelo mundo,
E o mundo hoje para mim é um cemitério de noite
Branco e negro de campas e árvores e de luar alheio
E é neste sossego absurdo de mim e de tudo que penso em ti.


 Álvaro de Campos 

segunda-feira, 13 de maio de 2013




O amor antigo vive de si mesmo,
não de cultivo alheio ou de presença.
Nada exige nem pede. Nada espera,
mas do destino vão nega a sentença.

O amor antigo tem raízes fundas,
feitas de sofrimento e de beleza.
Por aquelas mergulha no infinito,
e por estas suplanta a natureza.

Se em toda parte o tempo desmorona
aquilo que foi grande e deslumbrante,
a antigo amor, porém, nunca fenece
e a cada dia surge mais amante.

Mais ardente, mas pobre de esperança.
Mais triste? Não. Ele venceu a dor,
e resplandece no seu canto obscuro,
tanto mais velho quanto mais amor.

Carlos Drummond de Andrade

terça-feira, 7 de maio de 2013



 
"Tendo-me despido de todos os meus mantos
Tendo-me separado de adivinhos mágicos e deuses
Para ficar sozinha ante o silêncio
Ante o silêncio e o esplendor da tua face
Mas tu és de todos os ausentes o ausente
Nem o teu ombro me apoia nem a tua mão me toca
O meu coração desce as escadas do tempo em que não moras
E o teu encontro
São planícies e planícies de silêncio
Escura é a noite
Escura e transparente
Mas o teu rosto está para além do tempo opaco
E eu não habito os jardins do teu silêncio
Porque tu és de todos os ausentes o ausente."


Sophia de Mello Breyner Andresen
 

sábado, 13 de abril de 2013



Foste o beijo melhor da minha vida,
ou talvez o pior...Glória e tormento,
contigo à luz subi do firmamento,
contigo fui pela infernal descida!
Morreste, e o meu desejo não te olvida:
queimas-me o sangue, enches-me o pensamento,
e do teu gosto amargo me alimento,
e rolo-te na boca malferida.
Beijo extremo, meu prêmio e meu castigo,
batismo e extrema-unção, naquele instante
por que, feliz, eu não morri contigo?
Sinto-me o ardor, e o crepitar te escuto,
beijo divino! e anseio delirante,
na perpétua saudade de um minuto....

Olavo Bilac in Poesias


quarta-feira, 10 de abril de 2013

 
"O pensamento é triste; o amor, insuficiente;
e eu quero sempre mais do que vem nos milagres.
Deixo que a terra me sustente:
guardo o resto para mais tarde.

Deus não fala comigo - e eu sei que me conhece.
A antigos ventos dei as lágrimas que tinha.
A estrela sobe, a estrela desce...
- espero a minha própria vinda.

(Navego pela memória
sem margens.

Alguém conta a minha história
E alguém mata os personagens.)"


Cecília Meireles in Poesia Completa

"...uma tarde quase quebrando de tão clara, você chegou na minha saudade.
Escrevo. Há muito para dizer, mas é uma pena que não se possa mandar uma carta cheia de silêncio, que é música."

  CaioFAbreu in Carta à Vera Antoun

sábado, 9 de março de 2013




"Quem nunca viu o dia cinzento numa manhã de sol raiante? Quem de nós não quis correr daqui para algum lugar muito distante? Um lugar sem início, sem fim, onde apenas o “meio” acontecesse, um tempo de agora. Um espaço preenchido, que parasse de contra correr. Um tempo de nunca mais ir embora. Mas quando sinto que até os anjos se entristecem, fogem-me as palavras. Ontem fomos, hoje somos, amanhã seremos e, depois não mais. Não mais aqui… Aqui, onde voa o tempo, onde correm os homens, atrás de…ad infinitum querer. Quem de nós dois, simples mortais? Atrás de “coisas” para ter o quê? Se olhassem pra dentro, menos precisariam. Buracos vazados igual peneira. Fome que não cessa diante de um banquete. Sede, sede…até na praia morrer. Mas, ainda nos resta a alma. Esta é perene, esta és tu! Disfarçada de arcanja, ninfa, esfinge, neste mundo oco e crú. E quando chegar a hora derradeira, de nascermos ou acordarmos em um mundo que comporte tu e eu, finalmente, uma certeza…Fora daqui, não há cor, nem vida. Ninguém vive sem um dia cinzento. Em um dia assim, até os anjos ficam sem ação. Feliz mesmo, é um reles mortal como eu, que se enamora ad infinitum da ilusão."



Marinez Full

segunda-feira, 4 de março de 2013



Tens a medida do imenso?
Contas o infinito?
E quantas gotas de sangue
Pretendes
Desta amorosa ferida
De tão dilatada fome.

Tens a medida do sonho?
Tens o número do Tempo?
Como hei de saber do extenso
De um ódio-amor que percorre
Furioso
Passadas dentro do vento?

Sabes ainda meu nome?
Fome. De mim na tua vida.



Hilda Hilst in Cantares

sábado, 2 de março de 2013




Procurei o amor, que me mentiu.
Pedi à Vida mais do que ela dava;
Eterna sonhadora edificava
Meu castelo de luz que me caiu!

Tanto clarão nas trevas refulgiu,
E tanto beijo a boca me queimava!
E era o sol que os longes deslumbrava
Igual a tanto sol que me fugiu!

Passei a vida a amar e a esquecer...
Atrás do sol dum dia outro a aquecer
As brumas dos atalhos por onde ando...

E este amor que assim me vai fugindo
É igual a outro amor que vai surgindo,
Que há de partir também...nem eu sei quando...

Florbela Espanca

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013



Talvez eu seja
O sonho de mim mesma.
Criatura-ninguém
Espelhismo de outra
Tão em sigilo e extrema
Tão sem medida
Densa e clandestina

Que a bem da vida
A carne se fez sombra.

Talvez eu seja tu mesmo
Tua soberba e afronta
E o retrato
De muitas inalcançáveis
Coisas mortas.

Talvez não seja.
E ínfima, tangente
Aspire indefinida
Um infinito de sonhos
E de vidas.

Hilda Hilst

domingo, 3 de fevereiro de 2013




Quem tivesse um amor, nesta noite de lua,
para pensar um belo pensamento
e pousá-lo no vento!

Quem tivesse um amor - longe, certo e impossível -
para se ver chorando, e gostar de chorar,
e adormecer de lágrimas e luar!

Quem tivesse um amor, e, entre o mar e as estrelas,
partisse por nuvens, dormente e acordado,
levitando apenas, pelo amor levado...

Quem tivesse um amor, sem dúvida e sem mácula,
sem antes nem depois: verdade e alegoria...
Ah! quem tivesse... (Mas, quem teve? quem teria?)




Cecília Meireles in Mar Absoluto e Outros Poemas

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

 

 

Quando eu era criança
eu sonhava em ser invisível.
Hoje, já crescida,
eu sonho em ser menos olhos crédulos
e mais senso analítico.
Quem sabe ser um pouco de carne e osso,
... só um pouco, pra não esmorecer a cada desilusão.
Ser razão e emoção na medida exata,
ser tátil, sinestésica,
menos palavras e mais compreensão.

Quando eu era criança eu sonhava em voar.
Eu queria ter asas, poder ir e voltar pra me reabastecer,
nem muito e nem pouco com um tanto
de todos que eu gosto.
Agora que sou adulta eu percebi que gostar
cria cola e puxa a gente pra baixo
grudando nossos dois pés no chão,
fazendo pouca diferença
se temos asas ou não.

Com o passar do tempo eu me tornei
menos fantasia e mais realidade.
E mesmo sem asas eu continuo indo e voltando
pra os meus antigos e novos amores.
Sem liga e nem cola não há nada
que me prenda em algum lugar.
Porque hoje, eu sou apenas liberdade.


Marinez Full

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013






Que dor desses calendários
Sumidiços, fatos, datas
O tempo envolto em visgo
Minha cara buscando
Teu rosto reversivo.

Que dor no branco e negro
Desses negativos
Lisura congelada do papel
Fatos roídos
E teus dedos buscando
A carnação da vida.

Que dor de abraços
Que dor de transparência
E gestos nulos
Derretidos retratos
Fotos fitas

Que rolo sinistroso
Nas gavetas.

Que gosto esse do Tempo
De estancar o jorro de umas vidas.


Hilda Hilst in Cantares de perda e predileção

 

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013



Entre mim e mim, há vastidões bastantes
para a navegação dos meus desejos afligidos.

Descem pela água minhas naves revestidas de espelhos.
Cada lâmina arrisca um olhar, e investiga o elemento que a atinge.

Mas, nesta aventura do sonho exposto à correnteza,
só recolho o gosto infinito das respostas que não se encontram.

Virei-me sobre a minha própria experiência, e contemplei-a.
Minha virtude era esta errância por mares contraditórios,
e este abandono para além da felicidade e da beleza.

Ó meu Deus, isto é minha alma:
qualquer coisa que flutua sobre este corpo efêmero e precário,
como o vento largo do oceano sobre a areia passiva e inúmera…


Cecília Meireles

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013




Porque é melhor sonhar tua rudeza
E sorver reconquista a cada noite
Pensando: amanhã sim, virá.
E o tempo de amanhã será riqueza:
A cada noite, eu Ariana, preparando
Aroma e corpo. E o verso a cada noite
Se fazendo de tua sábia ausência.



Hilda Hilst in Júbilo, memória, noviciado da paixão



terça-feira, 1 de janeiro de 2013


Mãos

Côncavas de ter
Longas de desejo
Frescas de abandono
Consumidas de espanto
Inquietas de tocar e não prender.


Sophia de Mello Breyner