sábado, 29 de setembro de 2012


 

"Ficariam as marcas depois? Ele sabia que sim. Nenhuma cola conseguiria apagar os sinais da queda, da quebra. Ficariam sempre as arestas, ferindo feito espinho - nem na morte a rosa se livraria de sua sina de ferir. Para sempre o sinal da junção dos pedaços, uma cicatriz fina, persistente e tortuosa, que ele acompanharia com o dedo, devagar, sem nunca encontrar a saída. Porque estava num labirinto."


CaioFAbreu in O Sonho – Limite branco

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

                                 
         
 

Naquele momento
o riso acabou
e veio o espanto
e do meu choro
o desentendimento
e das mãos unidas
veio o tremor dos dedos
e da vontade de vida
veio o medo.
Naquele momento
veio de ti o silêncio
e o pranto de todos os homens
brotou nos teus olhos translúcidos
e os meus se afastaram dos teus
e dos braços compridos
veio o curto adeus.
Naquele momento
o mundo parou
e das distâncias
vieram águas
e o barulho do mar.
E do amor
veio o grande sofrimento.
E nada restou
das infinitas coisas pressentidas
das promessas em chama.
Nada.

 
Hilda Hilst  in Baladas
                  


 

terça-feira, 25 de setembro de 2012





                       Ex-pedir
                       Pedidos de socorro
                       Em todas as direções
                       Postado à janela
                       o laço na mão
                       ex-pirar
                       por dentro, inútil
                       medo em branco
                      examinando possibilidades
                      as mais diversas
                      de escape que não há.



CaioFAbreu in Dispersos - Caio 3D O Essencial da Década de 1980

domingo, 23 de setembro de 2012


"Há um pássaro azul no meu coração
que quer sair
mas eu sou demasiado duro com ele,
e digo, fica aí dentro,
não vou deixar
ninguém ver-te.
há um pássaro azul no meu coração
que quer sair
mas eu despejo whisky para cima dele
e inalo fumaça de cigarros
e as putas e os empregados de bar
e os funcionários da mercearia
nunca saberão
que ele se encontra
lá dentro.
há um pássaro azul no meu coração
que quer sair
mas eu sou demasiado duro com ele,
e digo, fica escondido,
queres arruinar-me?
queres foder o
meu trabalho?
queres arruinar
as minhas vendas de livros
na Europa?
há um pássaro azul no meu coração
que quer sair
mas eu sou demasiado esperto,
só o deixo sair à noite
por vezes
quando todos estão a dormir.
digo-lhe, eu sei que estás aí,
por isso
não estejas triste.
depois,
coloco-o de volta,
mas ele canta um pouco lá dentro,
não o deixei morrer de todo
e dormimos juntos
assim
com o nosso
pacto secreto
e é bom o suficiente
para fazer um homem chorar,
mas eu não choro,
e tu?"


Charles Bukowski

quinta-feira, 20 de setembro de 2012



"...experimentar por mim mesmo as minhas asas para descobrir, enfim, se elas são realmente fortes como imagino. E se não forem, mesmo que quebrassem ao primeiro vôo, mesmo que após um certo tempo eu voltasse derrotado, ferido, humilhado — mesmo assim restaria o consolo de ter descoberto que valho o que sou."


CaioFAbreu in Limite branco

segunda-feira, 17 de setembro de 2012






"Os braços foram-me tirados, cantava. Fui punida por abraçar. Abracei.

Prendi todos os que amei. Prendi nos momentos mais belos da minha vida.

Fechei nas mãos a plenitude de cada hora. Os braços apertados no desejo de abraçar.

Quis abraçar a luz, o vento, o sol, a noite, o mundo inteiro e quis retê-los.

Quis acariciar, curar, embalar, aclamar, envolver, cercar.

Forcei-os e prendi de tal modo que se partiram; partiram de mim."

 

Anais Nin in A Casa do Incesto

 

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

 
 

Cansa-me ser assim quem sou agora:

Planície, morte, treva, transparência.

Cansa-me o amor porque é centelha.

E exige posse e pranto, sal e adeus.

 

Hilda Hilst in Obra poética Reunida



 

domingo, 9 de setembro de 2012



 

Lembra-te que há um querer doloroso

E de fastio a que chamam de amor.

E outro de tulipas e de espelhos

Licencioso, indigno, a que chamam desejo.

Há o caminhar um descaminho, um arrastar-se

Em direção aos ventos, aos açoites

E um único extraordinário turbilhão.

Porque me queres sempre nos espelhos

Naquele descaminhar, no pó dos impossíveis

Se só me quero viva nas tuas veias?

 

Hilda Hilst in Poesia completa


 
 



 

terça-feira, 4 de setembro de 2012



Lírio Negro

Ao despertar não me reconheci
Encontrei em mim apenas um rascunho
Marcas de dedos por todo lugar
Deixaram sinais na minha pele.
Por dentro das carnes cinco dedos
ainda estrangulam meu coração
A intenção é fazer doer sem sangrar
Uma obra mal acabada conta uma história errada
Não foi legal do jeito que se desenrolou
Perdi o fio, fiquei no meio, a ver navios
Não ter sido foi o pior que poderia ter acontecido
Nó na garganta.
Espaço em branco entre o início e o depois
Paixão abortada me devastou
No lugar de rosas vermelhas
mergulhei em água um solitário lírio negro.
Não há razão para bem estar
O colorido da rua me agride o olhar
Fecho as cortinas do quarto.
Ignoro o que está fora do meu interior
apesar de saber, que a primavera chegou.



Marinez Full

domingo, 2 de setembro de 2012





É Junho?
É Setembro?
É um dia
em que estou
carregado de ti
ou de frutos,
e tropeço na luz,
como um cego,
a procurar-te.


Eugénio de Andrade