sexta-feira, 21 de dezembro de 2012



 



E quando eu visto minhas imagens com palavras
você as despe, pois só me conhece assim: nua.
Temos uma história de amor,
mas nunca fui tua.
Nós nem sequer queremos ter além do que temos:
gargalhadas no café da manhã,
confissões na hora do almoço,
e o “boa noite” demorado com gosto de beijo e afago:
coisas que só consegue fazer de longe quem te guarda dentro,
quem está sempre à espreita, ao lado.
Você tão menino com suas estratégias
pra me fazer rir das minhas pequenas tragédias.
Você homem imenso na assertividade:
esqueço que já sou mulher
e viro tua garota, menina estabanada
sem sabedoria, sem verdades.
E a gente sabe que nossas Almas já se abraçavam
desde de a existência de uma janelinha fechada.
E eis que surge a tua face
e a carícia, e a saudade.
Nenhum assombro,
tudo fez sentido.
Eu já te conhecia:
era você que me acalmava
quando acariciava as minhas costas
até que eu dormisse em paz,
naquele sonho.



Marla de Queiroz

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012




À ternura pouca
me vou acostumando
enquanto me adio
servente de danos e enganos

vou perdendo morada
na súbita lentidão
de um destino
que me vai sendo escasso

conheço a minha morte
seu lugar esquivo
seu acontecer disperso

agora
que mais
me poderei vencer?


Mia Couto

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012



"Eu pensei na maravilha que seria quando ao estar contigo o tempo parasse de contra correr. Depois pensei: quem sabe, se nós dois conseguíssemos ressignificar o real sentido do tempo fazendo ele andar a nosso favor. Logo em seguida me veio a idéia de que o problema está justamente na necessidade incontestável que temos o tempo todo de ter que dar sentido a tudo e, que isso acaba por nos tomar um tempo danado. Por fim, concluí que o que faz mesmo o tempo nos atropelar é o desejo desmedido que possuímos de nos fazer durar no lugar de simplesmente deixar rolar. "


Marinez Full

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012



"Foi para ti
que desfolhei a chuva
para ti soltei o perfume da terra
toquei no nada
e para ti foi tudo
Para ti criei todas as palavras
e todas me faltaram
no minuto em que talhei
o sabor do sempre
Para ti dei voz
às minhas mãos
abri os gomos do tempo
assaltei o mundo
e pensei que tudo estava em nós
nesse doce engano
de tudo sermos donos
sem nada termos
simplesmente porque era de noite
e não dormíamos
eu descia em teu peito
para me procurar
e antes que a escuridão
nos cingisse a cintura
ficávamos nos olhos
vivendo de um só
amando de uma só vida"


Mia Couto

domingo, 2 de dezembro de 2012



O peso do mundo
é o amor.
Sob o fardo
da solidão,
sob o fardo
da insatisfação

o peso
o peso que carregamos
é o amor.

Quem poderia negá-lo?
Em sonhos
nos toca
o corpo,
em pensamentos
constrói
um milagre,
na imaginação
aflige-se
até tornar-se
humano -
sai para fora do coração
ardendo de pureza -

pois o fardo da vida
é o amor,

mas nós carregamos o peso
cansados
e assim temos que descansar
nos braços do amor
finalmente
temos que descansar nos braços
do amor.
Nenhum descanso
sem amor,
nenhum sono
sem sonhos
de amor -
quer esteja eu louco ou frio,
obcecado por anjos
ou por máquinas,
o último desejo
é o amor
- não pode ser amargo
não pode ser negado
não pode ser contigo
quando negado:

o peso é demasiado
- deve dar-se
sem nada de volta
assim como o pensamento
é dado
na solidão
em toda a excelência
do seu excesso.

Os corpos quentes
brilham juntos
na escuridão,
a mão se move
para o centro
da carne,
a pele treme
na felicidade
e a alma sobe
feliz até o olho -

sim, sim,
é isso que
eu queria,
eu sempre quis,
eu sempre quis
voltar
ao corpo
em que nasci.


Allen Ginsberg in Canção

domingo, 25 de novembro de 2012



Agora que o silêncio é um mar sem ondas,
E que nele posso navegar sem rumo,
Não respondas às urgentes perguntas
Que te fiz.
Deixa-me ser feliz
Assim.
já tão longe de ti, como de mim.
Perde-se a vida, a desejá-la tanto.
Só soubemos sofrer, enquanto
O nosso amor durou.
Mas o tempo passou,
Há calmaria
Não perturbes a paz que me foi dada
Ouvir de novo a tua voz, seria
Matar a sede com água salgada.


Miguel Torga

quinta-feira, 22 de novembro de 2012






Deixa que eu te ame em silêncio.
Não pergunte, não se explique, deixe
que nossas línguas se toquem, e as bocas
e a pele falem seus líquidos desejos.

Deixa que eu te ame sem palavras
a não ser aquelas que na lembrança ficarão
pulsando para sempre
como se amor e vida
fossem um discurso
de impronunciáveis emoções.
 



Affonso Romano de Sant'Anna in Intervalo Amoroso

 

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

 
 
 
 



E só me veja
No não merecimento das consquistas.
De pé. Nas plataformas, nas escadas
Ou através de umas janelas baças:
Uma mulher no trem: perfil desabitado de carícias.
E só me veja no não merecimento e interdita:
Papéis, valises, tomos, sobretudos
 
Eu-alguém travestida de luto. (E um olhar
de púrpura e desgosto, vendo através de mim
navios e dorsos).
 
Dorsos de luz de águas mais profundas. Peixes.
Mas sobre mim, intensas, ilhargas juvenis
Machucadas de gozo.
 
E que jamais perceba o rocio da chama:
Este molhado fulgor sobre o meu rosto.



Hilda Hilst in Cantares do sem nome e de partidas

 

domingo, 11 de novembro de 2012



A Vida

 É vão o amor, o ódio, ou o desdém;
Inútil o desejo e o sentimento...
Lançar um grande amor aos pés d'alguém
O mesmo é que lançar flores ao vento!

Todos somos no mundo "Pedro Sem",
Uma alegria é feita dum tormento,
Um riso é sempre o eco dum lamento,
Sabe-se lá um beijo donde vem!

A mais nobre ilusão morre... desfaz-se...
Uma saudade morta em nós renasce
Que no mesmo momento é já perdida...

Amar-te a vida inteira eu não podia...
A gente esquece sempre o bem dum dia.
Que queres, ó meu Amor, se é isto a Vida!... 

 


Florbela Espanca, in Livro de Sóror Saudade
 

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Nosso amor é impuro
como impura é a luz e a água
e tudo quanto nasce
e vive além do tempo.
Minhas pernas são água,
as tuas são luz
e dão a volta ao universo
quando se enlaçam
até se tornarem deserto e escuro.
E eu sofro de te abraçar
depois de te abraçar para não sofrer.
E toco-te
para deixares de ter corpo
e o meu corpo nasce
quando se extingue no teu.
E respiro em ti
para me sufocar
e espreito em tua claridade
para me cegar,
meu Sol vertido em Lua,
minha noite alvorecida.
Tu me bebes
e eu me converto na tua sede.
Meus lábios mordem,
meus dentes beijam,
minha pele te veste
e ficas ainda mais despida.
Pudesse eu ser tu
E em tua saudade ser a minha própria espera.
Mas eu deito-me em teu leito
Quando apenas queria dormir em ti.
E sonho-te
Quando ansiava ser um sonho teu.
E levito, voo de semente,
para em mim mesmo te plantar
menos que flor: simples perfume,
lembrança de pétala sem chão onde tombar.
Teus olhos inundando os meus
e a minha vida, já sem leito,
vai galgando margens
até tudo ser mar.
Esse mar que só há depois do mar.

Mia Couto

quarta-feira, 24 de outubro de 2012




"E então ficamos os dois em silêncio, tão quietos
como dois pássaros na sombra, recolhidos
ao mesmo ninho,
como dois caminhos na noite, dois caminhos
que se juntam
num mesmo caminho...

Já não ouso... já não coras...
E o silêncio é tão nosso, e a quietude tamanha
que qualquer palavra bateria estranha
como um viajante, altas horas...
Nada há mais a dizer, depois que as próprias mãos
silenciaram seus carinhos...
Estamos um no outro
como se estivéssemos sozinhos..."

       

J.G.de Araujo Jorge

  

segunda-feira, 22 de outubro de 2012





"O Nunca Mais não é verdade.
Há ilusões e assomos, há repentes
De perpetuar a Duração.
O Nunca Mais é só meia-verdade:
Como se visses a ave entre a folhagem
E ao mesmo tempo não.
(E antevisses
Contentamento e morte na paisagem).


O Nunca Mais é de planície e fendas.
É de abismos e arroios.
É de perpetuidade no que pensas efêmero
E breve e pequenino
No que sentes eterno.

Nem é corvo ou poema o Nunca Mais."


Hilda Hilst in Cantares do sem nome e de partidas

terça-feira, 16 de outubro de 2012




"Abraça-me. Quero ouvir o vento que vem da tua pele, e ver o sol nascer do intenso calor dos nossos corpos. Quando me perfumo assim, em ti, nada existe a não ser este relâmpago feliz, esta maçã azul que foi colhida na palidez de todos os caminhos, e que ambos mordemos para provar o sabor que tem a carne incandescente das estrelas. Abraça-me. Veste o meu corpo de ti, para que em ti eu possa buscar o sentido dos sentidos, o sentido da vida.
Procura-me com os teus antigos braços de criança, para desamarrar em mim a eternidade, essa soma formidável de todos os momentos livres que a um e a outro pertenceram. Abraça-me. Quero morrer de ti em mim, espantado de amor. Dá-me a beber, antes, a água dos teus beijos, para que possa levá-la comigo e oferecê-la aos astros pequeninos.
Só essa água fará reconhecer o mais profundo, o mais intenso amor do universo, e eu quero que dele fiquem a saber até as estrelas mais antigas e brilhantes.
Abraça-me. Uma vez só. Uma vez mais.
Uma vez que nem sei se tu existes"


Joaquim Pessoa

quarta-feira, 10 de outubro de 2012




"Vem, antes que eu me vá, antes que seja tarde demais. Vem, que eu não tenho ninguém e te quero junto a mim. Vem, que eu te ensinarei a voar e a segurar nas crinas de meu cavalo branco. Vem, que tomaremos banho na chuva, desafiaremos o vento e venceremos o tempo. Vem, que o frio será tão grande, não sentirás mais dores, não sentirás mais nenhum mal. Vem que eu te quero junto a mim”


CaioFAbreu in Limite branco

sábado, 29 de setembro de 2012


 

"Ficariam as marcas depois? Ele sabia que sim. Nenhuma cola conseguiria apagar os sinais da queda, da quebra. Ficariam sempre as arestas, ferindo feito espinho - nem na morte a rosa se livraria de sua sina de ferir. Para sempre o sinal da junção dos pedaços, uma cicatriz fina, persistente e tortuosa, que ele acompanharia com o dedo, devagar, sem nunca encontrar a saída. Porque estava num labirinto."


CaioFAbreu in O Sonho – Limite branco

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

                                 
         
 

Naquele momento
o riso acabou
e veio o espanto
e do meu choro
o desentendimento
e das mãos unidas
veio o tremor dos dedos
e da vontade de vida
veio o medo.
Naquele momento
veio de ti o silêncio
e o pranto de todos os homens
brotou nos teus olhos translúcidos
e os meus se afastaram dos teus
e dos braços compridos
veio o curto adeus.
Naquele momento
o mundo parou
e das distâncias
vieram águas
e o barulho do mar.
E do amor
veio o grande sofrimento.
E nada restou
das infinitas coisas pressentidas
das promessas em chama.
Nada.

 
Hilda Hilst  in Baladas
                  


 

terça-feira, 25 de setembro de 2012





                       Ex-pedir
                       Pedidos de socorro
                       Em todas as direções
                       Postado à janela
                       o laço na mão
                       ex-pirar
                       por dentro, inútil
                       medo em branco
                      examinando possibilidades
                      as mais diversas
                      de escape que não há.



CaioFAbreu in Dispersos - Caio 3D O Essencial da Década de 1980

domingo, 23 de setembro de 2012


"Há um pássaro azul no meu coração
que quer sair
mas eu sou demasiado duro com ele,
e digo, fica aí dentro,
não vou deixar
ninguém ver-te.
há um pássaro azul no meu coração
que quer sair
mas eu despejo whisky para cima dele
e inalo fumaça de cigarros
e as putas e os empregados de bar
e os funcionários da mercearia
nunca saberão
que ele se encontra
lá dentro.
há um pássaro azul no meu coração
que quer sair
mas eu sou demasiado duro com ele,
e digo, fica escondido,
queres arruinar-me?
queres foder o
meu trabalho?
queres arruinar
as minhas vendas de livros
na Europa?
há um pássaro azul no meu coração
que quer sair
mas eu sou demasiado esperto,
só o deixo sair à noite
por vezes
quando todos estão a dormir.
digo-lhe, eu sei que estás aí,
por isso
não estejas triste.
depois,
coloco-o de volta,
mas ele canta um pouco lá dentro,
não o deixei morrer de todo
e dormimos juntos
assim
com o nosso
pacto secreto
e é bom o suficiente
para fazer um homem chorar,
mas eu não choro,
e tu?"


Charles Bukowski

quinta-feira, 20 de setembro de 2012



"...experimentar por mim mesmo as minhas asas para descobrir, enfim, se elas são realmente fortes como imagino. E se não forem, mesmo que quebrassem ao primeiro vôo, mesmo que após um certo tempo eu voltasse derrotado, ferido, humilhado — mesmo assim restaria o consolo de ter descoberto que valho o que sou."


CaioFAbreu in Limite branco

segunda-feira, 17 de setembro de 2012






"Os braços foram-me tirados, cantava. Fui punida por abraçar. Abracei.

Prendi todos os que amei. Prendi nos momentos mais belos da minha vida.

Fechei nas mãos a plenitude de cada hora. Os braços apertados no desejo de abraçar.

Quis abraçar a luz, o vento, o sol, a noite, o mundo inteiro e quis retê-los.

Quis acariciar, curar, embalar, aclamar, envolver, cercar.

Forcei-os e prendi de tal modo que se partiram; partiram de mim."

 

Anais Nin in A Casa do Incesto

 

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

 
 

Cansa-me ser assim quem sou agora:

Planície, morte, treva, transparência.

Cansa-me o amor porque é centelha.

E exige posse e pranto, sal e adeus.

 

Hilda Hilst in Obra poética Reunida



 

domingo, 9 de setembro de 2012



 

Lembra-te que há um querer doloroso

E de fastio a que chamam de amor.

E outro de tulipas e de espelhos

Licencioso, indigno, a que chamam desejo.

Há o caminhar um descaminho, um arrastar-se

Em direção aos ventos, aos açoites

E um único extraordinário turbilhão.

Porque me queres sempre nos espelhos

Naquele descaminhar, no pó dos impossíveis

Se só me quero viva nas tuas veias?

 

Hilda Hilst in Poesia completa


 
 



 

terça-feira, 4 de setembro de 2012



Lírio Negro

Ao despertar não me reconheci
Encontrei em mim apenas um rascunho
Marcas de dedos por todo lugar
Deixaram sinais na minha pele.
Por dentro das carnes cinco dedos
ainda estrangulam meu coração
A intenção é fazer doer sem sangrar
Uma obra mal acabada conta uma história errada
Não foi legal do jeito que se desenrolou
Perdi o fio, fiquei no meio, a ver navios
Não ter sido foi o pior que poderia ter acontecido
Nó na garganta.
Espaço em branco entre o início e o depois
Paixão abortada me devastou
No lugar de rosas vermelhas
mergulhei em água um solitário lírio negro.
Não há razão para bem estar
O colorido da rua me agride o olhar
Fecho as cortinas do quarto.
Ignoro o que está fora do meu interior
apesar de saber, que a primavera chegou.



Marinez Full

domingo, 2 de setembro de 2012





É Junho?
É Setembro?
É um dia
em que estou
carregado de ti
ou de frutos,
e tropeço na luz,
como um cego,
a procurar-te.


Eugénio de Andrade

 

segunda-feira, 27 de agosto de 2012




Não eras para os meus sonhos, não eras para a minha vida,
nem para os meus cansaços perfumados de rosas,
nem para a impotência da minha raiva suicida,
não eras a bela e doce, a bela e dolorosa.

Não eras para os meus sonhos, não eras para os meus cantos,
não eras para o prestígio dos meus amargos prantos,
não eras para a minha vida nem para a minha dor,
não eras o fugitivo de todos os meus encantos.
Não merecias nada. Nem o meu áspero desencanto
nem sequer o lume que pressentiu o Amor.

Bem feito, é muito bem feito que tenhas passado em vão
que a minha vida não se tenha submetido ao teu olhar,
que aos antigos prantos se não tenha juntado
a amargura dolente de um estéril chorar.

Tu eras para o imbecil que te quisesse um pouco.
(Oh! meus sonhos doces, oh meus sonhos loucos!)
Tu eras para um imbecil, para um qualquer
que não tivesse nada dos meus sonhos, nada,
mas que te daria o prazer animal
o curto e bruto gozo do espasmo final.

Não eras para os meus sonhos, não eras para a minha vida
nem para os meus quebrantos nem para a minha dor,
não eras para os prantos das minhas duras feridas,
não eras para os meus braços, nem para a minha canção.


Pablo Neruda

terça-feira, 21 de agosto de 2012




Quero dizer-te uma coisa simples: a tua
Ausência dói-me. Refiro-me a essa dor que não
Magoa, que se limita à alma, mas que não deixa,
Por isso, de deixar alguns sinais - um peso
Nos olhos, no lugar da tua imagem, e
Um vazio nas mãos, como se tuas mãos lhes
Tivessem roubado o tacto. São estas as formas
Do amor, podia dizer-te; e acrescentar que
As coisas simples também podem ser complicadas,
Quando nos damos conta da diferença entre o sonho e a realidade.
Porém, é o sonho que me traz à tua memória; e a
Realidade aproxima-te de ti, agora que
Os dias que correm mais depressa, e as palavras
Ficam presas numa refracção de instantes,
Quando a tua voz me chama de dentro de
Mim - e me faz responder-te uma coisa simples,
Como dizer que a tua ausência me dói.

 
Nuno Júdice

sábado, 18 de agosto de 2012



Todas as prendas que me deste, um dia,
Guardei-as, meu encanto, quase a medo,
E quando a noite espreita o pôr-do-sol,
Eu vou falar com elas em segredo...
E falo-lhes d'amores e de ilusões,
Choro e rio com elas, mansamente...
Pouco a pouco o perfume de outrora
Flutua em volta delas, docemente...
Pelo copinho de cristal e prata
Bebo uma saudade estranha e vaga,
Uma saudade imensa e infinita
Que, triste, me deslumbra e m'embriaga.
O espelho de prata cinzelada,
A doce oferta que eu amava tanto,
Que refletia outrora tantos risos,
E agora reflete apenas pranto,
E o colar de pedras preciosas,
De lágrimas e estrelas constelado,
Resumem em seus brilhos o que tenho
De vago e de feliz no meu passado...
Mas de todas as prendas, a mais rara,
Aquela que mais fala à fantasia,
São as folhas daquela rosa branca
Que a meus pés desfolhaste, aquele dia...

Florbela Espanca



quinta-feira, 16 de agosto de 2012


Começo a conhecer-me. Não existo.
Sou o intervalo entre o que desejo ser e os outros me fizeram,
ou metade desse intervalo, porque também há vida ...
Sou isso, enfim ...
Apague a luz, feche a porta e deixe de ter barulhos de chinelos no corredor.
Fique eu no quarto só com o grande sossego de mim mesmo.
É um universo barato.


Álvaro de Campos


 

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

 


"Como se fosse vão te amar e por isso perfeito.
Amar o perecível, o nada, o pó, é sempre despedir-se.
E não é Ele, o Fazedor, o Artífice, o Cego
O Seguidor disso sem nome? ISSO...
O amor e sua fome"



Hilda Hilst in Cantares do Sem-nome e de partidas



terça-feira, 7 de agosto de 2012




"Tão só nesta hora tardia [...]só sei falar dessas ausências que ressecam a palma da mão de carícias não dadas."




CaioFAbreu in OESP, Caderno 2, 29 julho de 1987

domingo, 5 de agosto de 2012




"...eu comecei a lembrar, lembrar, lembrar e o meu pensamento parecia um parafuso sem fim, afundando na memória, eu não suportava mais lembrar de tudo o que se perdeu, tudo o que perdi, não fui e não fiz, mas não conseguia parar. Então comecei a gritar no meio do jardim molhado com as duas mãos segurando a cabeça para que não estourasse."




CaioFAbreu in Carta para além do muro

segunda-feira, 30 de julho de 2012



"Preciso de alguém que tenha ouvidos para ouvir, porque são tantas histórias a contar. Que tenha boca para, porque são tantas histórias para ouvir, meu amor. E um grande silêncio desnecessário de palavras. Para ficar ao lado, cúmplice, dividindo o astral, o ritmo, a over, a libido, a percepção da terra, do ar, do fogo, da água, nesta saudável vontade insana de viver. Preciso de alguém que eu possa estender a mão devagar sobre a mesa para tocar a mão quente do outro lado e sentir uma resposta como – eu estou aqui, eu te toco também."


CaioFAbreu in OESP - Caderno 2, 29 julho de 1987


domingo, 29 de julho de 2012



No meu sonho você chegava. Sim, eu senti o teu cheiro. Não aquele que tenho gravado no meu córtex olfativo.  Aquele que se sente quando,  pelos passos,  o vento faz um leve sopro. Tão perfeitos são os sonhos.  


Ana Dal

sábado, 28 de julho de 2012


"E não sei o que dizer, Zézinho, não tô bem. Isso é uma coisa que eu posso dizer, tendo certeza dela. Mas é também uma coisa pela qual você não pode fazer nada, e de pouco adianta eu dizer. Ô, Zé, ando tão desorientado, já faz tempo. E me escondo, e não procuro ninguém, e fico mastigando a minha desorientação."


CaioFAbreu in Carta à José Márcio Penido
 
 
"Então, admitiu o medo. E admitindo o medo permitia-se uma grande liberdade: sim, podia fazer qualquer coisa, o próximo gesto teria o medo dentro dele e portanto seria um gesto inseguro, não precisava temer, pois antes de fazê-lo já se sabia temendo-o, já se sabia perdendo-se dentro dele — finalmente, podia partir para qualquer coisa, porque de qualquer maneira estaria perdido dentro dela."


CaioFAbreu in A gravata - O ovo apunhalado

sexta-feira, 27 de julho de 2012


"No ponto onde o silêncio e a solidão
Se cruzam com a noite e com o frio,
Esperei como quem espera em vão,
Tão nítido e preciso era o vazio."


Sophia de Mello Breyner Andresen

quinta-feira, 26 de julho de 2012



Das  últimas esperanças  arranco o néctar para, no meio da madrugada gelada, sair em busca  do  que resta do meu irmão  consumido pelo álcool.  Entre convulsões, alucinações e  bichos imaginários, os olhos  imploram ajuda.  Tremores no corpo. São maiores os t(r)emores da alma. Dignidade perdida pelos botecos fétidos.  Nas lágrimas, a lembrança de ter esquecido  o aniversário do filho, tão lindo como ele foi um dia.  Olhos perdido no tempo. Digo-lhe que ainda tem tempo. Para tudo tem tempo.  Minto.  Só  o  que  resta de mim, que também tem "vícios" que  consomem,   alimentado  no néctar da minha esperança ,   é  que  acredita.  O poeta disse que a esperança é uma droga alucinógena.  Tomara que  ele acredite.


Ana Dal

quarta-feira, 25 de julho de 2012


Bati no portão do tempo perdido, ninguém atendeu.
Bati a segunda vez e mais outra e mais outra.
Resposta nenhuma.
A casa do tempo perdido está coberta de hera
pela metade; a outra metade são cinzas.
Casa onde não mora ninguém, e eu batendo e chamando
pela dor de chamar e não ser escutado.
Simplesmente bater. O eco devolve
minha ânsia de entreabrir esses paços gelados.
A noite e o dia se confundem no esperar,
no bater e bater.

O tempo perdido certamente não existe.
É o casarão vazio e condenado.

Carlos Drummond de Andrade

domingo, 22 de julho de 2012



Mas era apenas isso,
era isso, mais nada?
Era só a batida
numa porta fechada?

E ninguém respondendo,
nenhum gesto de abrir:
era, sem fechadura,
uma chave perdida?

Isso, ou menos que isso
uma noção de porta,
o projecto de abri-la
sem haver outro lado?

O projecto de escuta
à procura de som?
O responder que oferta
o dom de uma recusa?

Como viver o mundo
em termos de esperança?
E que palavra é essa
que a vida não alcança?



Carlos Drummond de Andrade in As Impurezas do Branco

quarta-feira, 18 de julho de 2012




Eu te amo como quem esquece tudo
diante de um beijo:
as inúmeras horas desbeijadas
os terríveis desabraços
os dolorosos desencaixes
que meu corpo sofreu longe do seu.
Elejo sempre o encontro
Ele é o ponto do crochê.
Penélope invertida
nada começo de novo
nada desmancho
nada volto
Teço um novo tecido de amor eterno
a cada olhar seu de afeto
não ligo para nada que doeu.
Só para o que deixou de doer tenho olhos.
Cega do infortúnio
pesco os peixes dos nossos encaixes
pesco as gozadas
as confissões de amor
as palavras fundas de prazer
as esculturas astecas que nos fixam
na história dos dias


Elisa Lucinda


Ontem passou o passado lentamente
com sua vacilação definitiva
sabendo-te infeliz à deriva
com tuas dúvidas estampadas na testa.

Ontem passou o passado pela ponte
e levou tua liberdade prisioneira
trocando seu silêncio em carne viva
por teus leves alarmes de inocente.

Ontem passou o passado com sua história
e sua desfiada incerteza
com sua pegada de espanto e de reprovação.

Foi fazendo da dor um costume
semeando de fracassos tua memória
e deixando-te a sós com a noite


Mario Benedetti

terça-feira, 17 de julho de 2012



"Ele abriu os olhos. E acolheu todos os sentimentos, mesmo o medo. Não queria ficar só. Virou o rosto contra o travesseiro, sentindo o contato com a fronha limpa. As lágrimas molhavam o pano, mas eram um consolo. As paredes não riam mais. Um sentimento novo encolhia-se dentro dele, em atitude de espera. Não sabia dar-lhe nome, mas isso não era essencial. O essencial que estava dentro dele, o novo sentimento — quente, amável — como se apontasse um caminho com o dedo em riste."




CaioFAbreu in Limite branco



Numa noite de lua escreverei palavras,
simples palavras tão certas
que hão de voar para longe, com asas súbitas,
e pousar nessas torres das mudas vidas inquietas.

O luar que esteve nos meus olhos, uma noite,
nascerá de novo no mundo.
Outra vez brilhará, livre de nuvens e telhados,
livre de pálpebras, e num país sem muros.

Por esse luar formado em minhas mãos, e eterno,
é doce caminhar, viver o que se vive.
Porque a noite é tão grande... Ah, quem faz tanta noite?
E estar próximo é tão impossível!


Cecília Meireles  - Luar póstumo  In  Poesia Completa

domingo, 15 de julho de 2012




"Tudo em ti era uma ausência que se demorava:
Uma despedida pronta a cumprir-se."



Cecília Meireles in Elegia

sábado, 14 de julho de 2012




Meu delito

Quero-te, não quero, renego o desejo de querer.
Tesão que reverbera e me leva à estratosfera,
me faz tremer.
Culpo-te por me seduzir, por me aturdir,
por me provar sem consumir.
Enlouqueço, despeço-te, arrependo-me.
Para ti volto correndo.
Sinto o teu desejo por mim se resumir.
Luto contra  o vício da paixão que me
aprisiona. Sofro de obsessão.
Faço das minhas as tuas vontades.
Não obtenho reciprocidade e me sujeito à submissão.
Quero-te, renego-te
fugindo tomo rumo andando em círculos.
Volto para ti e me contradigo.
O meu delito é gostar de ser tua.
Encontro-te forte e verticalizado.
Me tomas dominada e me invades em carne crua.



Marinez Full  in  Coquetel molotov

quarta-feira, 11 de julho de 2012



"Ó tirânico Amor, ó caso vário
Que obrigas um querer que sempre seja
De si contínuo e áspero adversário..."


Luiz Vaz de Camões

terça-feira, 10 de julho de 2012




"E para que tudo não doesse demais quando não era capaz de, apenas esperando, evitar o insuportável, fazia a si próprio perguntas como: se a vida é um circo, serei eu o palhaço?"




CaioFAbreu in Aconteceu na praça XV – Pedras de Calcutá



"Como se te perdesse, assim te quero.
Como se não te visse (favas douradas
Sob um amarelo) assim te apreendo brusco
Inamovível, e te respiro inteiro
Um arco-íris de ar em águas profundas.
Como se tudo o mais me permitisses,
A mim me fotografo nuns portões de ferro
Ocres, altos, e eu mesma diluída e mínima
No dissoluto de toda despedida.
Como se te perdesse nos trens, nas estações
Ou contornando um círculo de águas
Removente ave, assim te somo a mim:
De redes e de anseios inundada."




Hilda Hilst



sábado, 7 de julho de 2012



"Desejarás desvendar palmo a palmo esse corpo que há tanto tempo supões, com essa linguagem mesmo de história erótica para moças, até que tua língua tenha rompido todas as barreiras do medo e do nojo, subliterário e impudico continuas, até que tua boca voraz tenha bebido todos os líquidos, tuas narinas sugado todos os cheiros e, alquímico, os tenhas transmutado num só, o teu e o dele, juntos - luz apagada, clichê cinematográfico, peças brancas de roupa cintilando jogadas ao chão."



CaioFAbreu in Natureza Viva - Morangos mofados